Uma sala preta com bancos, cadeiras, escadas de teatro, refletores, manuais e uma lousa remete ao espaço em que artistas ensaiam uma peça que tenta dar conta da dimensão dos nossos tempos. Encenada por 11 atores MC's - Fernanda D'Umbra, Georgette Fadel, Jairo Pereira, Luaa Gabanini, Lucienne Guedes, Nilcéia Vicente, Roberta Estrela D'Alva, Sérgio Siviero e Vinícius Meloni, Dani Nega e Eugênio Lima (sendo os dois últimos também djs da peça), Terror e Miséria no Terceiro Milênio – Improvisando Utopias, do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, tem direção de Claudia Schapira e estreia dia 28 de junho, sexta-feira, 21h, no teatro do Sesc Bom Retiro.
A escolha metalinguística de Claudia de situar uma peça dentro da outra reforça traços da dramaturgia de Brecht. Segundo a diretora, o cenário é um grande esqueleto. "Não há musculatura, é tudo no osso – isso se destaca tanto nos elementos cênicos quanto nos figurinos, compostos por casacos longos, saias e adereços em tons variados de cinza, conta. A peça é composta por 8 cenas e respectivos comentários, fora prólogo e epílogo, que discutem temas contemporâneos relacionado à ascensão do fascismo no mundo.
A dramaturgia é compartilhada e se atualizou durante o processo de criação da peça conforme as situações sociais se desenrolavam. Discussões sobre a flexibilização do porte de armas, o genocídio negro, a LGBTfobia, machismo e muitas outras violências cotidianas e institucionais se alternam e ganham forma a partir de textos falados e cantados , sendo uma característica relevante da linguagem deste coletivo: o teatro hip-hop . Para os artistas que realizam a dramaturgia sonora: "O som, a música e o silêncio entram como palavra e imagens , criando outras camadas que dimensionam ainda mais as discussões. A música é tensão e poesia, ela expressa o que não damos conta de dizer de outra maneira, é por vezes a utopia que nos auxilia a falar de coisas tão duras", explica a diretora.
Para este projeto, o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos convidou outros artistas, alguns já parceiros de longa data. Juntaram pessoas brancas e negras, homens e mulheres, diferentes pensamentos e classes sociais, acirrando confrontos e relações á luz da cena, evidenciando assim a crueza destes tempos e apontando conflitos que hoje se evidenciam : quem é que morre quem é quem mata? Quem tem privilégios e quem não tem?
Depois de Antígona Recortada (2013) - último espetáculo onde todos os componentes do grupo participaram juntos, que radicalizou a linguagem deste coletivo de teatro hip-hop e que lhes conferiu o Prêmio Governador do Estado - o grupo sentiu a necessidade do encontro com outros artistas, cada um com sua linguagem e com a sua visão de mundo, para a criação dessa nova obra.
Brecht foi escolhido como ponto de partida do espetáculo por ser um artista que viveu em tempos de guerra e sempre fez questão de trabalhar como um cronista do seu tempo, criando obras sobre o contexto em que vivia.
"Em tempos de rede, estar de corpo presente, frente a frente com o outro, é quase uma utopia", complementa Claudia sobre a importância de presentificar a partir do teatro o encontro com o público.
No seu diário de trabalho, Brecht se refere ao texto Terror e Miséria no Terceiro Reich como um compêndio de gestos sociais capaz de exemplificar o contexto que se formou durante os anos que precederam a segunda guerra mundial e que resultaram na ascensão do fascismo/nazismo.
Além do autor, outras referências do Núcleo para a composição deste espetáculo: escritores e ativistas , como Angela Davis, Grada Kilomba, Frantz Fanon, Achille Mbembe , Walter Benjamin, entre outros. No entanto, o Núcleo ressalta que nada serviu mais de referência ao grupo do que o que estamos vivendo neste momento. Claudia descreve a realidade como um livro de estudo e uma arena de contradições – sendo o espetáculo uma tentativa de propor discussões sobre este livro e confrontar os apontamentos que surgem a partir disso.